quarta-feira, 13 de junho de 2012

Um encontro com "a louca da casa"

          Uma cidade. Uma cidade nova.
          Resolveu, então, pôr os pés fora de casa.
          Havia uma faixa que lhe dava as boas vindas: “Bem-vinda à vida”
          Era nova na cidade, não sabia bem para onde caminhava, mas via aquela multidão que seguia numa linha reta, no meio da rua. Ninguém na calçada. Todos no meio da rua. Como se atrevesse a subir a calçada e por ela seguir aquelas pessoas, decerto foi olhada estranha; seu ato, em contradição ao dos demais, despertou certo preconceito: “Que faz essa estranha que não caminha conosco? Não sabe ela que a vida é aqui? Que é meio da rua?”
          É certo que não andavam todos juntos. Havia grupos, havia disputas entre alguns, havia disputas entre si; havia gente: cada qual com seus anseios, com seus afetos, com suas ambições. Havia gente parecida, havia gente diferente: havia gente.
          Se não quisesse ser discriminada, ela que tratasse de fazer suas escolhas: de quem vai estar perto? Quem serão suas companhias? É certo que as boas vindas foram dadas por algumas dessas pessoas, mas estas também estão misturadas naquele meio da rua, onde encontraram pessoas parecidas, com quem estabeleceram laços e afinidades. Suas escolhas.
          Ainda acanhada, permaneceu mais um pouco na calçada, mas já no meio-fio.
          Surpreende-se quando vê um carro indo com toda velocidade em direção àquela gente. Algumas delas também perceberam logo. No entanto, viu o quão indecisas ficavam quando tinham que decidir a calçada para a qual iriam, a fim de salvarem suas vidas, ou pelo menos de se livrarem de um acidente que deixaria gravíssimas sequelas. Algumas teriam ficado mais tempo, sem sequer perceberem que havia o tal carro, se ela não tivesse gritado e feito alarme, e improvisaram uma saída, decidiram pela calçada que foram por impulso (nem sabem se, naquelas circunstâncias, fizeram a escolha certa). Outras, permaneceram no meio da rua, ainda que tivessem escutado o grito: ou não acreditavam que havia um carro, ou demoraram demais para escolher a calçada – E a escolha da calçada era tão importante a ponto de alguém perder sua vida por causa disso? É que na escolha da calçada deve ser levado em conta desde o espaço até o material de que é feito o chão. Todas apresentam prós e contras, nenhuma é perfeita: há sempre um buraco, ou um material que machuca o pé, ou é tanta gente se refugiando naquela calçada que você quase poderia cair. – Não salvaram suas vidas, e seus corpos lá ficavam. No entanto, a caminhada não podia cessar. - Às vezes, um ou outro resolvia voltar e tentar ajudar; às vezes era feliz na ajuda, porque, afinal, nem todos morriam num caso semelhante; ainda, da vítima, havia uma respiração fraca e um batimento quase imperceptível do coração. – Nem todos apresentam um bom reflexo, ou seja, uma facilidade para se desviar de um carro. Às vezes, mesmo na fuga, poderiam cair e se machucar um pouco: mas... melhor que perder a vida ou adquirir profundas cicatrizes.
          Todos voltavam para o meio da rua. Estariam loucos? Não viram o que aconteceu àqueles infelizes que não saíram de lá? Por que voltam? Por que não ficam na calçada?
          É que a vida é lá! A vida é no meio da rua! Não havia razão para permanecer na calçada. E sua hora estava chegando. Não poderia ficar o tempo todo se refugiando na calçada. E, além disso, a calçada também poderia oferecer um perigo. Estava na hora de ela saber que a vida é lá, é lá no meio da rua, com todas aquelas pessoas.
          Não teve escolha: quando deu por si, já estava lá, na vida. E, lá, teve que ficar.
Caminhava com toda aquela gente, caminhava não sabia pra onde. O que não podia era ficar parada. Por isso, caminhava.
          Realmente, a vida era lá; enfim percebia.
          No início da sua estada na vida, gostava de ficar bem no meio da rua. Quando vinha um carro, era uma das últimas a sair de lá. Desafiava a própria sorte. No último instante se desviava, e corria para a calçada que já havia escolhido com antecedência. Era só para mostrar que havia uma rapidez invejável nas suas decisões. E, de certa forma, gostava disso.
          No entanto, percebeu que essa rotina de viver, fazer coisas importantes, tentar ter alguma importância, fazer seu nome, ter sucesso e, além de tudo isso e mais, ainda ficar atenta para os possíveis carros que aparecerem era uma tarefa muito irritante.
          Aguentava, porque no caminho havia muita coisa legal, muita coisa que valia a pena conhecer, vivenciar; havia sempre pessoas para conhecer, para acrescentar aos seus afetos e suas companhias... havia ainda muita vida pela frente! E agüentava somente por causa disso, e “isso” era uma razão que só tinha quando olhava para aquela estrada com otimismo.
          Já cansava. Parecia que tudo naquela estrada se repetia. Parecia que tudo era parafraseado. Quem arquitetou aquela cidade, no final, estava perdendo a inspiração. Aquela rua não acabava, não teria um fim conhecido. As coisas se repetiam, mas, assim como aconteceu com ela, pareciam novas para aquelas pessoas que tinham acabado de entrar naquela caminhada.
          Enfim, cansava. Parecia que quanto mais caminhava, mais carros apareciam. Às vezes nem eram carros, podiam ser desde caminhões (que faziam um estrago maior) até bicicletas (que ainda podiam deixar alguns, menos atentos, lesionados).
          Mais um carro, e desvio. As calçadas mudavam constantemente, e, por isso, ninguém poderia já saber de cor qual iria escolher. E era sempre: escolhas, escolhas, escolhas. Um “Ou isto ou aquilo?” constante da consagrada poetisa.
          Já cansada. Já cansou. Ela era fraca: não comia todo o feijão que lhe botavam no prato.
          Mais um carro, e desvio. Mais um carro, e desvio. Mais um carro... e desiste.


 ("... há pouco tempo, passou por mim um sopro que infelizmente não tive tempo de captar, pois lembro que me senti impulsionado a começar algo. Depois tudo se dissolveu.") - Julio Ramón Ribeyro // citação encontrada no livro "A louca da casa" de Rosa Montero

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Parecido com essa estação


Sonhei muito, sonhei tudo, sonhei bom. Sonhei tanto que nem sei, ou esqueci onde terminou o sonho no momento em que acordei.  

Eu senti, eu vivi de tão longe - não sei se só espaço ou, também, tempo separava. Mas vivi o que será eternizado por sua “não acontecência”.

Eu não lembro uma palavra. Eu não lembro o menor gesto. Eu só me lembro da claridade de um olhar que encontrava o meu. Certeiro. Ou me enganava, minha miopia.

Mas acreditava e duvidava, ao mesmo tempo. Não podia.

Eu vivi. Um sonho realizado num sonho. De um aperto de mãos que nunca se tocaram. De um abraço de braços que nunca chegaram perto.

Entre os quais, de verdade, existia apenas olhares que denunciavam um nada existente.
Ou um “qualquer coisa” que ninguém via. Ou o que nenhum, sequer, entendia.

Coincidência? Eu não sei se é a palavra certa. Que palavra pode expressar algo que acontece no subconsciente e que, meio sem entender, se encaixa na vida de uma forma que data comemorativa ou números - a eles, antes tinha sido dado outro significado - alertam o que pode, finalmente, fazer sentido? (Como se eu fosse minha cigana, e minha mão - que é esse meu "eu" que observa e tenta relacionar fatos de modo a ser coerente - e minha mão denunciasse um futuro que vivi, e num futuro mais além, que corresponde ao presente, é que percebo e me dou conta de que esse futuro passado e vivido é um futuro que ainda está por vir, por estar sujeito a interpretações nunca dadas e a consequências ainda mais futuras do que as que causa no futuro mais além que corresponde ao presente.) Nada, nada é coincidência; e nada tá escrito. Há, no máximo, eu esboço mal feito, que a gente, que tem a pena, tem que aperfeiçoar, e marcar bem qualquer traço. Seja bom, seja ruim, vale mais a folha mais manchada: o traço forte que foi apagado não será jamais refeito.




Dedicado ao meu personagem que morre, não morre e volta a dar trabalho. Um personagem cujo óbito Deus esqueceu de determinar.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Pra encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima e nunca dor.

Nunca exijo das minhas palavras que elas estejam sempre saindo de mim, deixo que se libertem quando bem quiserem, quando acharem que o momento é propício. Entretanto, aos poucos, eu tenho tirado delas essa liberdade, essa autonomia, esse poder de escolha, convenço-as de que o momento nunca é propício. Nem este está sendo. O meu pássaro azul, como o de Bukowski, só sai à noite, enquanto todos dormem, e, por essa razão, ninguém vê, mas ele existe, e eu não o deixo morrer, ou eu morro também.

Estou focada demais, e enxergo somente a minha frente. Quero alcançar o horizonte, e ir mais além. E vejo só a minha frente. Sem olhar para os lados. Estou numa estrada em que a cabeça deve estar sempre erguida e não pode se distrair, ou eu posso me perder (é o que reza a hipocrisia e a coragem do medroso que quer pôr medo em mim). Mas estou tão focada que me perco. É como caminhar sem olhar pro chão e cair num buraco.

À medida que caminho, vou alcançando e avistando outros horizontes e outras ambições, e posso estar (e por que não?) dando voltas e mais voltas sem alcançar o verdadeiro objetivo, que não sei qual é. E saberia se, por um momento, me perdesse desse foco, e me distraísse, e descobrisse. Mas, aí, vem a vida com suas mãos invisíveis endireitar-me a coluna e a cabeça, se eu quero cair ou me desviar. Não a vida, é verdade, mas a realidade que estou vivendo. Realidade que põe medo, mas que não me permite chorar. Que me apresenta alternativas, e me diz simplesmente “Escolhe”. Que me dá perguntas, e não me dá chance de buscar um esclarecimento. Que me dá armas, e não me deixa me defender. Que me dá um caminho, e não me dá um norte. Que me dá ideias e que me cala a boca. Tirando, assim, a minha liberdade, da mesma forma que eu tiro das minhas palavras. Não passa de um reflexo.

Quanto mais eu foco, mais eu me perco, e mais eu me distraio em pensamento, porque ambiciono uma liberdade que a própria realidade me fez tirar de mim. Fiz um compromisso comigo e penhorei minha liberdade.

Quanta vida perco se não me distraio! Se não busco outras fontes! E minha liberdade em jogo...

Danço tango a passos de samba. Exponho ideias à voz de mudo. E vivo à maneira de.